domingo, 8 de dezembro de 2013

A pipoca

No início de minha carreira profissional, um acontecimento perturbou-me. Um garoto de aproximadamente quatro anos, após levar à boca uma pipoca e mastigá-la, a eliminou em um cinzeiro destes de areia, comuns em locais de grande circulação de pessoas. A ação repetiu-se muitas vezes como se o tempo ao redor houvesse parado. Não resistindo àquela cena aproximei-me de maneira delicada para não assusta-lo, e com voz baixa, perguntei, porque fazia aquilo, trazendo-o de volta ao lugar onde o tempo corre. De imediato nada respondeu olhando-me surpreso, procurou alguém, provavelmente a mãe, deu de ombros e foi-se. Não mais o vi.
O que impediu a conclusão da ingestão da pipoca, jamais saberei, mas tenho cá comigo a ilusão de que também posso por um instante afastar-me do tempo que corre, e retroceder a outros tempos.
Ainda me recordo a festa deflagrada pela criançada, eu e meus contemporâneos de infância, quando um adulto se propunha a “estourar pipoca”. O óleo numa panela em seguida o milho para pipoca, uma tampa competente e depois de algum tempo aquele ruído inconfundível, que respeitava sempre uma seqüência de começo meio e fim, ou seja; alguns estalidos, muitos estalidos, decrescendo novamente a poucos estalidos. O aroma que hoje evoca saguão de cinema naquela época era o preludio da surpresa de uma confirmação; estava tudo branco e macio. A magica tantas vezes realizada se fizera mais uma vez. Meu coração já disparado pedia por mais, pela emoção apoteótica do sabor, desejava pela incorporação definitiva da alegria, tão definitiva quanto a transitoriedade da alegria permite.
Aquela transformação me confundia. Talvez tenha sido a pipoca que tenha me ensinado o significado da palavra transformação, Eu fazia questão de buscar na embalagem do milho um grão e morde-lo certificando-me que era duro e em seguida mastigava uma pipoca, e claro, era macia. Mas eu comia a pipoca ainda quentinha e pronto, jamais me interessei em saber como a pipoca ficava após a mastigação, pois tenho a impressão que quando a imaginava em minha barriguinha ainda era a mesma.
Já ouvi varias vezes que o tempo tudo transforma, desde a mais resistente rocha até a mais firme convicção. Na realidade o tempo apenas transcorre sem ter para onde ir, as coisas e nós mesmos é que mudamos. Vou segurar o tempo mais um pouco.
Tomei de um recipiente, provavelmente uma tigela, com muita pipoca dentro, em um destas ocasiões, e pus-me a comer sentado no portão de casa, a tarde estava possivelmente fria, já que não costumavam estourar pipoca em dias quentes, eu estava só, não sei exatamente porque. Naqueles tempos era possível a uma criança pequena ficar só em frente de sua casa sem correr riscos.
Olhava tranqüilamente os que passavam, não deviam ser muitos, subitamente o pânico me possuiu a ansiedade saíra de zero ao máximo em poucos instantes aquela figura sinistra gerava em mim mais que um desejo, uma necessidade de fuga imediata. Uma pessoa adulta do sexo feminino cujas feições não mais me recordo, mas seus cabelos crespos e loiros são indeléveis de minha memória.
Tudo nela era comum menos sua altura, tratava-se de uma anã, uma doce criatura diziam-me, mas naquele momento nada era possível a não ser o terror.
Uma senhora de no máximo um metro de altura toda vestida de branco e loura parecia com uma pipoca gigante andando. Como não me aterrorizar?
Fazer com que uma criança entendesse aquela situação não deve ter sido fácil, sei que conseguiram, pois me recordo ter trocado algumas palavras com a senhora anã e me sinto grato por ela conseguir suportar o constrangimento da minha expressão de torturado. Naquele momento talvez eu tenha me transformado em alguém melhor.
A recordação desse singelo episódio fez-me compreender o que se passara com o garoto do início de nossa reflexão.
Quanta diferença há entre a imagem que guardamos em nossa memória, e a realidade dinâmica que nos surpreende a cada instante.
Tudo se transforma, dependendo de uma série de alternativas que não cabe análise neste momento, mas nada é exatamente igual a cada nova observação. No entanto, na maioria das vezes, devem ocorrer muitas alterações em um objeto para que percamos a capacidade de identificá-lo. O calor consegue alterar o milho a ponto de não nos ser possível chamá-lo como tal, temos que lhe dar outro nome: pipoca. Que é bela (saborosa aos olhos) e apetitosa.
Damos a tudo um nome para que seja possível a identificação, ser é ter um nome, e a cada nome uma descrição de características que determinarão uma identidade. A identidade em minha visão é isto: um nome dado a uma série de características, tomadas em conjunto estruturado, e tida como indivisível.
Quando, no entanto, as características não correspondem ao que se conhece, é possível que o denominemos como nada, e o nada é inútil e o inútil é rejeitável.
Pouco percebemos, na nossa servidão diária ao senso comum, a importância do que nos parece útil. Penso, que a sociedade industrial que vivemos , alicerçada no binômio produto , consumo , tem por essencial que o normal está na utilidade. A utilidade das pessoas define seu status e normalidade, todo aquele que de modo geral chamamos de anormal é alguém com algum limite à utilidade plena. Alguém que, por uma fatalidade nasce sem uma das mãos, antes de ser classificado como limitado para algumas atividades, é rotulado como anormal, e se um outro é desprovido de beleza, por portar algum defeito anatômico que não limite qualquer função orgânica, ou à capacidade de produzir, terá seu estigma reconhecido como indicativo de incapacidade para a produção, e será posto em um plano de inferioridade. O diferente perde mais que sua plena utilidade, O diferente perde sua credibilidade.
Que fazer então com uma pipoca toda mutilada por afoitos e afiados dentinhos?
Que fazer daquela massa sem forma, com características imprecisas e sem um nome?
O mesmo que há séculos fazemos com todos aqueles que não se enquadram aos inflexíveis conceitos de normalidade vigentes. A rejeição!
Nosso companheirinho de reflexões assim fez, rejeitou, pois não sabia do que se tratava; não pertencia a seu limitado elenco de identidades aquela coisa que da sua boca saía, e temeu agregar tal coisa a si, pois poderia tratar-se de algo perigoso, assim como aquela anã pareceu-me aterradora.

Uma pipoca, quando surge pela primeira vez diante de nossos olhos, nada é se não uma ocorrência desprovida de qualquer valor. Atribuiremos a cada coisa um determinado posto em nossa lista pessoal de preferencias, quando temos nossos sentidos invadidos por todas suas propriedades, neste caso como nosso exemplo são pipocas, então, teremos uma idéia do que seja uma pipoca quando a provarmos em todos seus aspectos.
O grande filósofo espanhol do século passado, José de Ortega Y Gasset cuja opinião sobre pipocas desconheço, afirmou que: “idéias as temos". Possuímos as idéia que criamos de todas as coisas.Posso concluir então que, o conjunto das idéias que temos das coisas, existe, e constituem um patrimônio, e como tal deve ser expandido e protegido.
Para que aquilo que possuímos seja identificado como existente, deve necessariamente ter limites, ou seja, extensão. Quando olhamos o fundo de uma panela antes de ser tampada para o preparo de pipocas, vemos milho para pipocas e óleo, ao abrirmos a panela após o termino do preparo verificamos que há uma diferença, o espaço esta ocupado de maneira diferente, a extensão da pipoca tanto em conjunto como individualmente é maior, modifica o meio em que se encontra de maneira diversa, as características físicas passam a ser completamente diferentes, e alteram a situação anterior ao preparo.
De nós mesmos fazemos também uma idéia que construímos no percurso de nossas vidas em uma seqüência frenética de transformações, aquisições e perdas. A essa idéia chamamos de "eu”, que permitirá que nos entendamos existentes. O "eu" não é diferente de qualquer outra idéia, só será percebido como existente quando conhecida sua extensão.
Penso que o "eu" também é limitado pela extensão de sua ação no meio em que se encontra, e das peculiaridades da ação que efetua sobre a realidade.
A idéia que fazemos da pipoca esta no “eu”, pois "eu" tenho uma idéia de pipoca construída da dialética do “eu” e da circunstancia, e que agrego ao “eu” estendendo assim sua ação, e nesse processo ampliam-se às possibilidades de ação do “eu”. Mas... Se todas as coisas (idéias) estão no “eu” permitindo que sejam em nós, onde esta o "eu"?
Novamente Ortega Y Gasset dá-nos uma pista "nas crenças nós estamos". O “eu” está no que nos parece definitivamente verdadeiro.
Quando das minhas aulas de mecânica no colégio, fui informado que: Quando um corpo era abandonado a uma distância qualquer da superfície da terra esta o atrairia em uma aceleração constante, ou seja, as coisas quando alçadas ao espaço caem.
Eu já cria nessa verdade mesmo antes, muito antes do colégio, e se ninguém jamais tivesse chamado minha atenção para este fato, não o questionaria tão pouco conseguiria conceber qualquer situação onde esta condição não existisse.
É nos imprescindível um mundo minimamente estável. Mesmo que tenhamos que criar um e em seguida, crermos que seja a plena realidade, e que a todos servirá. Assim para algumas pessoas pode parecer estranho que a lua não caia sobre a terra, e buscarão uma resposta para manter a estabilidade do mundo que habitam. Uma resposta bastante comum é o confortável... É assim mesmo.
Não pensamos em determinadas coisas, apenas cremos, e, por não serem pensadas não se transformam, pois se assim ocorrer, a consistência de nossas crenças instabiliza-se, e por insegurança rejeitaremos o que transformamos com nosso pensar. Assim serão sempre as mesmas coisas que darão suporte à idéia que fazemos de nos mesmos. Para aquelas coisas que apenas cremos sem questionamento damos o nome de pré-conceitos, torna-se aqui obrigatório entender que o nosso “eu” assiste em pré - conceitos, que nos deixarão freqüentemente vulneráveis ao erro, pois a circunstancia, que difere da realidade que construímos, é implacável.
Somos de fato seres misteriosos, capazes de colocarmos o nosso eu em um mundo que cremos, e que em ultima instancia nós mesmos criamos. Vivemos em uma projeção de nós mesmos e chamamos tal projeção de realidade, e não aceitamos a idéia que tal realidade seja individual, contamos sempre com a nossa realidade para todos.

Ter credibilidade é: Por alguma ação, voluntária ou não, Induzir no outro a percepção de que nosso "eu" está nele (pertence a sua crença), e com isso, nossos atos futuros serão coerentes à sua realidade, já que nosso "eu", em função da tal ação mantém a estabilidade de seu mundo. Mas... Será possível que haja alguém que dê credibilidade ao divergente de si?
Já me alonguei nesse texto o que basta, não responderei agora, apenas sugiro reflexão sobre a obediência, e com certeza a resposta virá.

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